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Miscelânea

Ciências Sociais: fichamentos / clippings / recortes de não-ficção. Nonfiction Litblog.

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Ciências Sociais: fichamentos / clippings / recortes de não-ficção. Nonfiction Litblog.

🕋 Islamismo ⩼ ⛪️ Cristianismo ainda no Século XXI / Planeta

revista Planeta nº 509, de maio de 2015. Artigo Ascensão islâmica.

Na metade do século, o número de muçulmanos no mundo estará bem mais próximo do de cristãos do que hoje, e em 2070 o islamismo deverá ser a religião dominante no mundo, informa um estudo da Pew Research Center divulgado em abril [de 2015]. A mudança é atribuída basicamente ao índice de fertilidade mais alto nas comunidades muçulmanas -- atualmente, é de 3,1, ante 2,7 dos cristãos (a média mundial é 2,5) -- e à juventude de seus adeptos. Em 2070, o cristianismo já não será majoritário em países como França, Reino Unido e Austrália.

A mudança global se desenha há algum tempo: em 2010, a população mundial tinha 31,4% de cristãos e 23,2% de muçulmanos; já em 2050, o índice destes últimos subirá para 29,7%, enquanto o de cristãos se manterá. A África Subsaariana deverá ser o principal motor de crescimento das populações de cristãos e muçulmanos nas próximas décadas.

Percentual dos grupos religiosos em relação à população mundial
Religiões 2010 2050  
Cristianismo 31,4%
Islamismo 23,2% 29,7%
Sem religião 16,4% 13,2%
Hinduísmo 15,0% 14,9%
Budismo 7,1% 5,2%
Religiões sincréticas 5,9% 4,8%
Outras religiões 0,8% 0,7%
Judaísmo 0,2% 0,2% ✡︎
Total 100,0% 100,1%
Crescimento em relação ao aumento da população 2010-2050 (Aumento da população global: 35%.)
# Religiões Aumento relativo
Muçulmanos 73%
Cristãos 35%
Hindus 34%
Judeus 16%
Religiões sincréticas 11%
Sem religião 9%
Budistas -0,3%

O Pew Research Center ressalva que essas projeções se baseiam em números que podem sofrer mudanças a partir de eventos como guerras, catástrofes naturais, ou alterações nas condições econômicas.

☞ Lembrete: Judaísmo, Cristianismo, e Islamismo (fundadas nessa ordem cronológica) são as principais religiões abraâmicas em número de adeptos; ou seja, são religiões com origens comuns entre si: o patriarca Abraão e o culto ao deus dele.

  • A divergência entre o Judaísmo e o Cristianismo é se Jesus era um novo profeta do Judaísmo que guiaria seu povo (os judeus, a princípio, os gentios talvez depois), ou se era um blasfemador que atentava contra as Leis judaicas e que seria mercecedor de morte.
  • A divergência entre essas duas religiões e o Islamismo é sobre de qual filho de Abraão se originam: judeus e cristãos seguem o segundo filho de Abraão, Isaque (filho de Sara, com quem Abraão era casado), enquanto os Islâmicos seguem o filho mais velho, Ismael (filho de Hagar, serva de Sara).

Abraão teve ao todo 8 filhos (todos homens), sendo 3 suas esposas. A que lhe deu os outros 6 filhos foi Quetura, porém, parece que ninguém quis fundar religiões com base nesses outros filhos. "Graças a deus", pode-se dizer, pois já existe desunião suficiente no mundo por causa de 2 de seus filhos, imagine só se houvesse divergências por causa de cada um dos 8?!

Notas 🎒 escolares → estímulo à mediocridade

Roberto Rafael Dias da Silva. Livro Customização curricular no ensino médio: elementos para uma crítica pedagógica. Cortez Editora, 1ª edição, 2019. Capítulo 5: "Estetização Pedagógica, Aprendizagens Ativas e Práticas Curriculares no Brasil".

Em seu texto A escola sob medida ([que demarca sua aproximação epistemológica ao movimento escolanovista]), [o psicólogo suiço] Claparède [...] dirige sua atenção para produzir uma crítica da escola de seu tempo, na medida em que a instituição privilegiava o aluno médio, através da atribuição de notas.

Mas, o que é lastimável é o fato de a escola pensar ter realizado tudo, quando atribuiu esta nota, quando estabeleceu tal distinção. Esta determinação é, para ela, um ponto de chegada, quando deveria ser um ponto de partida: os fortes, os medíocres e os fracos não são tratados diferentemente, são obrigados a andar no mesmo ritmo, o que é nocivo a uns e outros. Não parece suspeitar que uma notação é um processo didático (Claparède, 1973, p, 172).

Seria necessário que a escola levasse em conta as diferenças individuais? Mesmo reconhecendo que, historicamente, a escola operava no nível da padronização, o psicólogo seguirá defendendo que se fazia urgente uma superação das pedagogias centradas no aluno médioum tipo monstruoso e antinatural (Claparède, 1973, p. 173). Na lógica da argumentação claparediana, um dos primeiros aspectos a serem reconhecidos seriam as capacidades naturais dos estudantes. Em outras palavras, para produzir uma educação que atenda às variações individuais, era necessário reconhecer que um indivíduo só produz na medida em que se apela para suas capacidades naturais, e que é perder tempo querer por força desenvolver nele capacidades não-possuídas (Claparède, 1973, p. 174). Esse aspecto também indicava uma crítica aos programas escolares uniformes.

Ao postular a centralidade dos interesses individuais dos estudantes e de sua variedade de aptidões, Claparède passa a defender a constituição de uma escola sob medida. Isso poderia ser desenvolvido através de classes paralelas, classes móveis e, principalmente, o sistema de opções, no qual a maior parte [do tempo] era deixada às ocupações individuais de cada aluno (Claparède, 1973, p. 178). Exemplar, nessa direção, seria a discussão sobre os critérios para a organização das turmas baseados na diferenciação.

Parece-me, além disto, que a criação de classes fortes e fracas não poderia resolver de modo satisfatório o grave problema das aptidões. O que importa, com efeito, não é tanto diferenciar as crianças conforme o vulto de sua capacidade de trabalho, senão conforme a variedade de suas aptidões. Tal classificação quantitativa, seria preciso substituí-la por uma classificação qualitativa. A escola atual sempre quer hierarquizar; antes de mais nada, o importante é diferenciar. Esta ideia fixa de hierarquia vem do emprego dos diversos sistemas empregados para aguilhoar os alunos: boas notas ou más, filas, castigos, concursos, prêmios... (Claparède, 1973, p. 181-182. Grifos do autor)

Referência

  • CLAPARÈDE, Edouard. A escola sob medida. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1973.

Colombo ⩼ Dogmas

Ivy Judensnaider. Apostila "Introdução à Educação a Distância", Editora Sol, São Paulo, 2019. Capítulo 1: "Um Pouco de Histórica: das Universidades Medievais às Universidades do Século XXI".

Segundo Buarque (1994), em 1486, na Espanha, por ocasião da viagem de Colombo à Índia, e conforme pedido feito pelos reis católicos Fernando e Isabel, uma comissão da Universidade de Salamanca avaliou o projeto do explorador italiano. Seria possível o empreendimento tal como o navegador estava propondo?

Os acadêmicos responsáveis por essa análise concluíram que não havia como o empreendimento dar certo: Colombo cometera erros nos cálculos em relação ao diâmetro da Terra. Sabe‐se, hoje, que os cálculos de Colombo estavam efetivamente errados; no entanto, a Universidade de Salamanca equivocava‐se em recomendar que a viagem não fosse feita. Indiferente a isso, Colombo viajou e, em vez de encontrar as terras que pretendia explorar, descobriu a América.

Pode‐se perguntar: faltou ousadia e espírito de aventura aos acadêmicos de Salamanca? É provável que sim. As universidades do século XV, tal como algumas universidades do século XXI – e como outras instituições, não necessariamente na área da educação –, tendem a proteger seus dogmas e suas certezas. Como abandonar o que se imagina saber em troca do ainda desconhecido? (BUARQUE, 1994). Por isso, as universidades e outras instituições temem mudanças, resistindo, em especial, ao que pode provocar transformações em suas práticas e estruturas.

Referência

  • BUARQUE, C. A aventura da universidade. 2. ed. São Paulo: Universidade Estadual Paulista; Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994.

💼💵 "Salário a Combinar": (des)vantagens / Você RH

Bárbara Nor. Salário a combinar: muitas empresas não abrem os valores salariais durante o processo seletivo; embora seja uma prática padrão, isso pode prejudicar a imagem da companhia, além de deixar o recrutamento mais caro e lento. Você RH nº 74, de junho/julho de 2021. Editora Abril.

Razões

Em abril, das 50.019 vagas anunciadas na plataforma InfoJobs, por exemplo, 42% vieram com a frase “salário a combinar”. O restante, 58%, dividia-se entre vagas com salário ou com faixa salarial. Segundo Nathália Paes, responsável pelo desenvolvimento de negócios do InfoJobs, a maioria das oportunidades que abrem informação salarial costuma ser para níveis mais baixos, como júnior e pleno. “Ocultar o salário ainda é prática recorrente em grande parte das empresas, especialmente para cargos mais altos”, afirma.

O que parece estar por trás disso é o medo [...] de atrair candidatos puramente interessados no salário, e não na vaga em si. A ideia é que não declarar o valor pode chamar pessoas mais motivadas por outros fatores que não o financeiro, como cultura e propósito. É por isso que Maria Sartori, diretora de recrutamento da Robert Half, consultoria especializada em recrutamento e seleção, costuma recomendar aos clientes que não abram nem mesmo a faixa salarial. Ainda que essa seja, de fato, a questão que Maria Sartori mais ouve dos candidatos. “Divulgar essa informação pode desestimular o profissional a seguir no processo, mesmo antes de conhecer a vaga”, diz. “E, no final, é possível que ajustemos o valor de acordo com quem escolhemos”.

Contraponto

As empresas podem sair perdendo com a prática para além da insatisfação dos potenciais candidatos. “Ocultar o valor tem muitas consequências, até financeiras, para o RH”, diz Nathália Paes, do InfoJobs. O principal motivo é que isso tornaria os processos seletivos mais ineficientes: não abrir o salário costuma atrair muito mais candidatos para a vaga, segundo ela. “Mas isso não significa que eu tenha candidatos aderentes — quantidade não é qualidade” [...] “Isso custa dinheiro e tempo do RH.”

Maconha recreativa nos 🇺🇸 EUA: motivos das legalizações / Superinteressante

Brian Hagenbuch. uper Interessante, edição especial "A Revolução da Maconha: o mundo começou a ver a planta de outro jeito. Entenda por quê.", 2014. Artigo "Os pioneiros: saiba como iniciativas populares conseguiram reverter a proibição da maconha em dois Estados nos EUA, principal defensor das políticas de drogas focadas na repressão".

Nos EUA, o processo que levou à legalização foi o oposto do que aconteceu no Uruguai. No país latino-americano, a política mudou por iniciativa do governo federal e contra a maioria da opinião pública. Nos dois Estados norte-americanos [Washington e Colorado] as leis foram criadas por vontade popular. Ativistas redigiram projetos de lei e recolheram as assinaturas necessárias para levá-los à votação por plebiscito. E conseguiram aprová-lo com muito trabalho e graças a uma mudança (e tanto!) no ponto de vista da população de todo o país sobre a maconha: nos anos 80, o apoio público à legalização nos EUA era de cerca de 20%, segundo o Instituto de pesquisas Gallup. Em 2012, ano da eleição [e dos plebiscitos], o apoio nacional à medida já era de 48% e, no ano passado [2013], esse índice chegou ao auge de 58%.

Mas o que impulsionou uma mudança tão rápida da opinião pública em relação à cannabis? Nos EUA, não havia uma crise de segurança como a que motivou a regulação no Uruguai. O tráfico de maconha (e de outras drogas) faz suas vítimas fora do país -- no México, principalmente. Para os ativistas, o que mudou o ponto de vista das pessoas foi a aprovação do uso medicinal da droga, que emplacou em 19 Estados e no distrito federal -- começando pela Califórnia, em 1996.

[...]

O uso medicinal afetou especialmente a saúde -- e a opinião -- dos eleitores mais velhos. Muitos deles passaram a tratar dores e doenças com maconha, e o medo e a incompreensão associados à droga começaram a desaparecer.

[...]

Washington e Colorado já tinham aprovado leis de maconha medicinal em 1998 e 2000, respectivamente. Essa experiência prévia também foi importante, de outro modo: Mostramos às pessoas que era possível regular o mercado medicinal de modo estrito e bem-sucedido. Isso fez uma grande diferença para aprovar a ideia de fazer o mesmo com o mercado recreativo, diz o advogado Brian Vicente, que redigiu parte da Emenda 64, no Colorado.

🧠 Depressão ∨ ansiedade: causas internas ∨ externas / Fiocruz

Fernando Tenório, psiquiatra e escritor. Meu paciente favorito. Pós-Tudo. RADIS nº 204, de setembro de 2019. Fundação Fiocruz.

Cada médico tem seu paciente favorito. Negar isso é mentir para si próprio. Admito que o meu paciente favorito é um homem entre 50 e 60 anos com um humor ácido. Ele vem ao meu consultório há dois anos, mas nunca topou tomar medicação. Na primeira vez, após uma longa conversa, fiz essa proposta e quase apanhei. O homem saiu valente e prometeu nunca mais voltar.

No mês seguinte lá estava ele uma hora antes do combinado na recepção. E assim foi até bem pouco tempo, pois meu paciente favorito nunca confirmava sua ida, dizendo que não via necessidade em ir, mas estava presente uma hora antes do horário combinado no dia marcado. Eu passei a escutá-lo mais e vez por outra falava tangenciando sobre uma medicação quando o seu discurso autorizava, porém era repelido imediatamente.

Quando eu lhe perguntava como estava a vida, ele me respondia: Tão bagunçada quanto o seu cabelo. Quando a arguição partia para sua vida sentimental, ele me respondia: O senhor tem partes com cartomantes e apresentadores de programas que gostam de juntar casais. Eu aceitava esse humor cítrico de bom grado e vez por outra retrucava na mesma moeda.

Seguimos então até o mês de maio, quando ele adentrou minha sala com barba por fazer, cara de quem não dormia há várias noites e me intimou: Me dá a merda do teu remédio que eu não vou bem. Depois de dois anos, ele decidiu que aquele era o seu momento. Perguntei a ele o que seria não estar bem. A resposta veio na lata: Quem não está bem só pode estar mal. Coloca um remédio logo antes que eu me arrependa. Depois dessas respostas atravessadas o homem falava sobre seu emprego sem estabilidade, das contas que não param de subir, dos dilemas com uma filha mais nova e sua desesperança em relação ao futuro.

Ontem o camarada voltou e eu questionei se ele havia melhorado. A resposta foi sumária: Eu continuo me lascando, só que agora sem chorar.

Fiquei tonto com a resposta.

  • É possível tratar uma doença que se manifesta num sujeito, mas que surge pelas condições socioculturais que o circundam?
  • Até que ponto os quadros depressivos e ansiosos são doenças propriamente ditas?
  • Seriam eles manifestações individuais de uma crise sistêmica e estrutural da maneira como vivemos e nos relacionamos?

[...]

Tenho repensado muito a minha prática a partir dessas reflexões. Caso não faça isso, virarei um simples prescritor. Quiçá um traficante de drogas legais. Ser médico vai além de saber medicar. Ontem, quando meu paciente saiu, eu falei que havia aprendido muito com a sinceridade dele. A sua resposta foi assim: Então na próxima o senhor me paga a consulta ao invés de eu te pagar. Ando com umas contas atrasadas e vai ser de grande valia. Sorrimos juntos e eu pude perceber que não foi o remédio o responsável por isso.

🩺 Médicos ∈ indústria farmacêutica

Marion Nestle, professora emérita da Faculdade de Nutrição, Estudos Alimentares e Saúde Pública da Universidade de Nova York, e professora visitante no curso de Ciências Nutricionais da Universidade de Cornell. Uma Verdade Indigesta: Como a Indústria Manipula a Ciência do que Comemos. Editora Elefante, 1ª edição, 2019. Capítulo 1: "Uma história para ter cautela"

As farmacêuticas gastam fortunas com lembrancinhas, mas gastam fortunas ainda maiores com visitas pessoais de representantes, cursos de educação continuada, refeições e férias — tudo para influenciar as práticas de prescrição médica. Na década de 1970, críticos escreveram livros sobre os gastos dessas companhias para “alcançar, persuadir, adular, mimar, iludir” os médicos — e, assim, vender mais. A maior parte do dinheiro foi para os representantes, homens — e, mais tarde, mulheres — que visitavam consultórios no intuito de explicar os benefícios dos medicamentos e deixar presentes. Pelo súbito aumento das vendas de marcas específicas de remédios, os farmacêuticos sabiam quando os representantes haviam feito uma visita na região. No jornal da Associação Médica Americana, propagandas de medicamentos respondiam por metade da renda, o que talvez explique por que a instituição não reclamava das práticas de marketing da indústria farmacêutica.35

[...] O ponto de partida para análise da influência do financiamento é o impacto dos presentes no comportamento humano — que tem sido observado pelos psicólogos.

Psicologia dos presentes

Assim como eu antes de fazer essa pesquisa, você também pode achar que presentes não são grande coisa. Você dá e recebe presentes, alegremente ou não. Você agradece a quem o presenteou. E ponto final. Porém, os muitos psicólogos que estudam os efeitos causados pelos presentes que a indústria farmacêutica dá para médicos recordam que estes profissionais são humanos e que muito do que os seres humanos pensam e sentem ocorre inconscientemente. Todos nós, inclusive os médicos, respondemos a presentes de maneira previsível. Nossas respostas — e isso é decisivo — geralmente são involuntárias, inconscientes e irreconhecíveis. Nenhum médico, portanto, pretende se comprometer com uma empresa farmacêutica, mas até mesmo um presente pequeno é suficiente para mudar a prática de prescrição em favor de quem o presenteou. Presentes maiores têm ainda mais impacto. Apesar dessa evidência, os agraciados — humanos como são — acreditam que os mimos e os pagamentos das empresas farmacêuticas não exercem influência.36

Essas conclusões derivam de estudos experimentais de psicologia, neurobiologia e economia comportamental. Demonstram que até mesmo pessoas com boas intenções respondem de maneira previsível a presentes e pagamentos, mas não percebem que o fazem. Empresas farmacêuticas, portanto, não “compram” médicos, e médicos não “se vendem” para empresas farmacêuticas. A influência é muito mais sutil e torna excepcionalmente difícil a prevenção, o gerenciamento e até mesmo a discussão sobre o assunto. Se não acreditam que são influenciados, os beneficiários não veem motivo para recusar presentes e pagamentos.”37 Os médicos podem não ser corruptos, mas o sistema os corrompe.

As empresas farmacêuticas estão no negócio de venda de medicamentos. Querem, portanto, que os médicos prescrevam suas marcas no lugar de concorrentes, genéricos ou produtos sem receita, mesmo quando essas alternativas apresentam melhores resultados e são mais eficazes e menos dispendiosas. Pagam aos médicos para fazer recomendações por elas, falar e agir em nome delas em comitês ou conselhos. Também oferecem inscrições gratuitas em conferências (realizadas, geralmente, em resorts), despesas de viagem e refeições.

  • [...] No início dos anos 1990, pesquisadores mostraram que uma viagem gratuita para uma conferência patrocinada pelo setor dobrava a taxa de prescrição de um certo remédio.
  • Em 2000, uma análise de mais de quinhentos estudos descobriu que presentes, refeições, financiamentos de viagem e visitas de representantes da indústria estavam fortemente correlacionados com mais prescrições de medicamentos de marca em detrimento de alternativas mais baratas ou mais eficazes.40
  • [...] Em 2015, pesquisadores descobriram que quase a metade de todos os médicos dos Estados Unidos aceitou pagamentos do setor, num total de 2,4 bilhões de dólares.
  • Um levantamento sobre as prescrições de estatina41 no ano seguinte chegou a uma correlação: para cada mil dólares recebidos de empresas farmacêuticas, a taxa de prescrição para estatinas de marca aumentou 0,1%, enquanto os pagamentos por treinamento educacional levaram a um aumento de 4,8%.
  • Pesquisadores preocupados com a crise de saúde provocada pelo uso excessivo de opiáceos descobriram que, de 2013 a 2015, um em cada doze médicos norte-americanos recebeu pagamentos — mais de 46 milhões de dólares — de empresas que vendiam esses medicamentos.42

Especialmente preocupante é o fato de que não se precisa de muito para exercer essa influência. Canetas, lembrancinhas, blocos de prescrição e amostras de medicamentos induzem a mudanças nas taxas de prescrição. Visitas de representantes da marca são particularmente eficazes — em função disso, agora, muitos hospitais as proíbem. Pagamentos para falar ou fornecer recomendações também funcionam muito bem. Hoje, almoços e jantares — no valor médio de 138 dólares (espera-se que com vinho) — são o tipo mais frequente de presente da indústria farmacêutica. Até mesmo refeições de menos de quinze dólares estão intimamente relacionadas a maiores taxas de prescrições — mesmo meses depois de terem sido desfrutadas. Jornalistas investigativos da ProPublica usaram os dados do Open Payments[, um portal da transparência imposto por lei,] para demonstrar a relação entre a magnitude dos pagamentos das empresas farmacêuticas e as práticas de prescrição.43

Igualmente perturbadora é a disposição generalizada para aceitar tais presentes. Em 2009, quase 84% dos médicos relataram ter recebido presentes ou pagamentos de empresas farmacêuticas — cardiologistas foram alvos especialmente receptivos. Quando interrogados, porém, 90% dos que aceitam financiamento de corporações farmacêuticas negam a influência e dizem que suas prescrições se baseiam apenas no conhecimento clínico e na experiência. Pesquisas mostram outra situação. Quem recebe os regalos permanece fiel a quem presenteou por um longo tempo e, quanto maiores os agrados, mais chance de que os agraciados se oponham a qualquer medida para prevenir esse tipo de influência.

Por que médicos permitem isso? Esse aspecto também foi pesquisado. Lembre-se de que eles são humanos e de que a influência não é consciente. Médicos acreditam que merecem esses presentes. Eles estudaram por anos, sacrificando-se para chegar à posição em que estão, trabalham arduamente e talvez ainda estejam pagando as dívidas do financiamento estudantil. Veem-se, portanto, no direito de receber presentes, pois creem que são racionais nas práticas de prescrição e invulneráveis à influência da indústria farmacêutica. A lembrança dos sacrifícios que fizeram realmente aumenta a disposição para que aceitem esses agrados.44 Nada disso importaria se presentes não exercessem influência, mas o fato é que exercem. Laços financeiros com empresas farmacêuticas não afetam apenas as práticas de prescrição médica: também influenciam opiniões em comitês consultivos de medicamentos e resultados de pesquisas.

Referências

  • 35 SILVERMAN, M. M.; LEE, P. R. Pills, Profits and Politics. Berkeley: University of California Press, 1974; ANGELL, M. The Truth About the Drug Companies: How They Deceive Us and What to Do About It. Nova York: Random House, 2004.
  • 36 SAH, S.; FUGH-BERMAN, A. Physicians under the influence: Social psychology and industry marketing strategies. "The Journal of Law, Medicine & Ethics", 2013, v. 41, n. 3, pp. 665-72; KATZ, D.; CAPLAN, A. L.; MERZ, J. F. All gifts large and small: Toward an understanding of the ethics of pharmaceutical industry gif-giving "American Journal of Bioethics", 2003, v. 3, n. 3, pp. 39-46; LO, B.; GRADY, D. Payments to physicians: Does the amount of money make a difference? JAMA, 2017, v. 317, n. 17, pp. 1719-20.
  • 37 Association of American Medical Colleges and Baylor College of Medicine. The Scientific Basis of Influence and Reciprocity: A Symposium, 12 jun. 2007.
  • 40 ORLOWSKI, J. P.; WATESKA, L. The effects of pharmaceutical firm enticements on physician prescribing patterns: There's no suck thing as a free lunch "Chest", 1992, v. 102, pp. 270-3; WAZANA, A. Physicians and the pharmaceutical industry; Is a gift ever just a gift? "JAMA", 2000, v. 283, n. 3, pp-373-80.
  • 41 Estatinas são fármacos usados no tratamento da hipercolesterolemia e na prevenção da aterosclerose. [N.E.]
  • 42 TRINGALE, K. R.; MARSHALL D.; MACKEY, T. K. et al. Types and distribution of payments from industry to physicians in 2015. "JAMA", 2017, v. 317, n. 17, pp. 1774-84; YEH, J. S.; FRANKLIN, J. M.; AVORN J. Association of industry payments to physicians with the prescribing of brand-name statins in Massachusetts. "JAMA Intern Med.", 2016, v. 176, n. 6, pp. 763-68; HADLAND, S. E.; KRIEGER, M. S.; MARSHALL, B. D. L. Industry payments to physicians for opioid products, 2013-2015 "American Journal of Public Health", 2017, v. 107, n. 9, pp. 1493-5.
  • 43 ROBERTSON, C.; ROSE, S.; KESSELHEIM, A. S.; Effect on financial relationships on the behaviors of helath care professionals: A review of the evidence. "The Journal of Law, Medicine & Ethics, 2012, v. 40, n. 3, pp. 452-66; LARKIN, I.; ANG, D.; STEINHART, J. et al. Association between academic medical center pharmaceutical detailing policies and prescription prescribing. "JAMA", 2017, v. 317, n. 17, pp. 1785-95; DEJONG, C.; AGUILAR, T.; TSENG, C.-W. et al. Pharmaceutical industry sponsored meals and physician prescribing patterns for Medicare beneficiaries. "JAMA Intern Med.", 2016, v. 176, n. 8, pp. 1114-22; ORNSTEIN, C. Public disclosure of payments to physicians from industry. "JAMA", 2017, v. 317, n. 17, pp. 1749-50.
  • 44 SAH, S. Conflicts of interest and your physician: Psychological processes that cause unexpected changes in behavior. "The Journal of Law , Medicine & Ethics", 2012, v. 40, n. 3, pp. 482-7; SAH, S.; LOEWENSTEIN, G. Effects of reminders of personal sacrifice and suggested rationalizations on residents' self-reported willingness to accept gifts "JAMA", 2010, v. 304, n. 11, p. 1204-11.

Achei interessante a autora não ter mencionado uma forma aprentemente óbvia da indústria saber se o médico merece a comissão ou não: checar quais remédios foram prescritos pelo médico, e se o paciente comprou o de marca ou o genérico. Quando o paciente vai na farmácia comprar o remédio prescrito, a receita fica retida, com a identificação do médico e do paciente. É muito fácil então a farmacêutica que está patrocinando o médico conferir se ele está receitando o medicamento que ela queria que ele prescrevesse, e se está conseguindo persuadir os pacientes (bocós) de que o remédio de marca é melhor que o genérico. O preço que se paga a mais no remédio de marca é repartido entre a farmacêutica e o médico, daí a tal comissão.

Ensino ⩼ 🎒 escolarização estatal / Milton Friedman

Milton & Rose Friedman. Livro Liberdade de Escolher: O Novo Liberalismo Econômico. Editora Record, 1980. Capítulo 6: O que Há de Errado com Nossas Escolas? Seção "Um Plano de Cupões Para a Escolarização Primária e Secundária".
Milton Friedman: idoso calvo, de terno e gravata, à frente de uma estante de livros, com seus óculos caracteristicamente da década de 1970 ou 1980, época na qual ganhou o Nobel de Economia e alcançou o auge da fama.
1990 Thomas Pelham Curtis
Acreditamos que a penalidade ora imposta aos pais que não enviam seus filhos às escolas públicas viola o espírito da Primeira Emenda [(liberdade religiosa)], o que quer que advogados e juízes possam decidir sobre sua letra. As escolas públicas também ensinam religião — não uma religião formal, teísta, mas um conjunto de valores e crenças que constituem uma religião em tudo, salvo no nome. Os métodos vigentes reduzem a liberdade religiosa de pais que não aceitam a religião ensinada pelas escolas públicas, mas, ainda assim, são forçados a pagar para que seus filhos sejam por elas doutrinados e pagar ainda mais para fazer com que os filhos escapem da doutrinação.

🧚 Utopia → fracasso. Razões. / Tolstói

Liev Tolstói. Livro O reino de Deus está em vós, ou: O cristianismo apresentado não como uma doutrina mística mas como uma moral nova. Editora BestBolso, 2016, 3ª edição. Capítulo 12: "Conclusão - Fazei penitência, porque o reino de Deus está próximo, está à nossa porta".
Todas [as] injustiças e crueldades tornam-se habituais somente porque existem pessoas sempre prontas para cometê-las servilmente, pois, se não existissem, aqueles que dão as ordens nunca teriam sequer ousado sonhar com o que ordenam com tamanha desenvoltura [..].
Liev Tolstói. Livro O reino de Deus está em vós, ou: O cristianismo apresentado não como uma doutrina mística mas como uma moral nova. Editora BestBolso, 2016, 3ª edição. Capítulo 8: "Aceitação inevitável pelos homens de nossa sociedade dadoutrina da não resistência ao mal".
Leon Tolstói: idoso barbudo de aspecto messiânico olhando serenamente.
1901 Ilya Yefimovich Repin
E é com uma sociedade assim, composta de homens embrutecidos [...], que certos homens públicos – conservadores, liberais, socialistas, anarquistas – desejariam construir uma sociedade racional e moral. Assim como não é possível construir uma casa com traves contorcidas e podres, com homens dessa espécie não é possível organizar uma sociedade moral e racional. Eles podem constituir apenas uma manada dirigida com gritos e o chicote do pastor. E é o que acontece.

🕵️ Vigilância estatal ∋ efeito colateral


Lindner, Andrew M (Skidmore College), e Tongtian Xiao (Columbia University). Subverting Surveillance or Accessing the Dark Web? Interest in the Tor Anonymity Network in U.S. States, 2006-2015. OSF, 3 de janeiro de 2018. Seção "Literature Review", subseção "Managing Exposure".

How do people respond to surveillance? A longstanding view of police departments is that surveillance promotes criminal deterrence (Marx 2003). People are less likely to speed on the highway if they know the police are watching. But, by the same logic, various forms of surveillance may deter behavior that is not criminal, merely stigmatized. The central concern of many civil liberties advocates is that a growing surveillance state may deter perfectly legal forms of behavior, thought, and expression due to fear of exposure (Ball 2009; Marx 2016). For precisely this reason, new forms of surveillance often yield not only deterrence, but also new waves of resistance against them.

Referências



  1. Ball, Kirstie. 2009. Exposure: Exploring the subject of surveillance. Information, Communication & Society 12(5):639-657.

  2. Marx, Gary T. 2003. A tack in the shoe: Neutralizing and resisting the new surveillance. Journal of Social Issues, 59(2):369-390.

  3. Marx, Gary T. 2016. Windows into the Soul: Surveillance and Society in an Age of High Technology. Chicago: University of Chicago Press.