PLANETA – Em seu livro [Por uma Vida Mais Simples (Ed. Cultrix)], o sr. mostra que a simplicidade voluntária tem raízes na antiga Grécia. Em que momento ela passou a atrair mais atenção no Ocidente?
D’ANGELO – Na Antiguidade, pregava-se a simplicidade como forma de não desviar o ser humano daquilo que era visto como objetivo real da existência: os relacionamentos, a vida em comunidade, a reflexão. Tudo o que viesse do mundo material, como objetos e propriedades, deveria ser visto como meio para atingir essas finalidades, e jamais ser confundido com elas. No Ocidente, a ideia de simplicidade ganhou força com Henry David Thoreau, escritor norte-americano do século 19, que viveu na pele as transformações causadas pelo capitalismo nascente em seu país e sua comunidade, em Concord, na região metropolitana de Boston. Para Thoreau, o sistema econômico imprime uma pressa sem significado ao dia a dia do cidadão, impõe novidades tecnológicas de utilidade duvidosa e o afasta da natureza, das pessoas e da pura e simples contemplação. Mas a simplicidade só se tornou voluntária – ou seja, só ganhou o adjetivo pelo qual a conhecemos hoje – quando o advogado norte-americano Richard Gregg, discípulo de Gandhi, escreveu o livro O Valor da Simplicidade Voluntária, em 1939. A expressão foi retomada nos anos 1970 por dois pesquisadores da Califórnia, que, em meio à crise do petróleo e às incertezas políticas dos EUA, flagraram um movimento crescente de pessoas que simplificavam suas vidas – e, enfim, puseram a expressão e o modo de vida a ela associado na pauta da imprensa e do cidadão comum.
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PLANETA – Thoreau propôs a adesão a uma vida sem luxos, em contato com a natureza e com tempo para a contemplação e a reflexão. Hoje, vivemos em meio a um intenso fluxo de informações propiciado pela internet, que chega a adoentar muitas pessoas, mas que inegavelmente facilita as comunicações e a disseminação de conhecimentos. É possível conciliar essas tendências?
D’ANGELO – Perfeitamente. Alguém já disse que, hoje em dia, somos editores da nossa linha do tempo. Ou seja, por mais que o volume de informações seja elevado, podemos selecionar o que vai aparecer para nós. Além disso, podemos simplesmente ignorar certas ferramentas – eu mesmo optei por não ter um smartphone, por temer o excesso de estímulos que ele oferece. Basta saber estabelecer limites e reconhecer que ignorar parte da informação produzida é mais do que um esforço de seleção ou edição – é medida de sanidade mental.
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PLANETA – Simplicidade voluntária é algo acessível apenas para quem já construiu um patrimônio?
D’ANGELO – De fato, todos os exemplos que vi, aqui e no exterior, sugerem que a simplicidade voluntária é um movimento de classe média ou média alta. O sujeito, para enveredar por ele, resguarda as condições de poder retornar ao estilo anterior, mais convencional. Além disso, em geral é justamente essa trajetória “convencional” que permite reunir condições para fazer a transição rumo a um estilo de vida menos materialista. Mas convém atentar para um fato. Quando vivemos em maior privação material, tendemos a supervalorizar o que nos falta. Quem passa por dificuldades materiais não se dedica à vida simples porque já vive nela, ainda que involuntariamente – e não percebe vantagem nisso. Quer, por isso mesmo, superá-la, dar lugar à abundância, pois ali reside o que imaginam ser a felicidade. É preciso atingir um certo patamar de afluência para descobrir que ela, por si, não pode entregar todos os benefícios que promete – ao menos, não aqueles de caráter emocional, subjetivo.
PLANETA – Um dos aspectos essenciais da simplicidade é aprender a descartar o que é inútil, de bens materiais a ideias. Como um interessado pode diagnosticar o que é útil e inútil em sua vida?
D’ANGELO – É necessário um período de reflexão, motivado por um desconforto crescente com o rumo tomado por sua vida. É raro que o descarte ocorra por impulso. Em geral, ele é um processo. E, na hora de descartar, Gandhi recomendava: se algo ainda oferece conforto ou ajuda interior, mantenha-o. Pois descartá-lo será doloroso e você passará a desejá-lo de volta.
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PLANETA – E em relação ao Brasil?
D’ANGELO – O Brasil contém diversas realidades. É possível viver à la Primeiro Mundo em uma grande capital sem, contudo, contar com várias facilidades de que um cidadão do Primeiro Mundo dispõe – boa infraestrutura, transporte coletivo eficiente, segurança, etc. É esse o público mais suscetível às ideias da simplicidade: urbano, com ensino superior, de classe média a média alta, de meia-idade e insatisfeito com os rumos da sua vida. Mas a maioria da população sequer pode mostrar-se insatisfeita com esse estilo de vida, pois não pôde prová-lo ainda. Para estes, a evolução pessoal passa pela evolução material. O consumo e a melhora das condições de vida de muita gente, nos últimos anos, apenas reacentuaram a importância desses aspectos para o ideal de felicidade projetado.