As farmacêuticas gastam fortunas com lembrancinhas, mas gastam fortunas ainda maiores com visitas pessoais de representantes, cursos de educação continuada, refeições e férias — tudo para influenciar as práticas de prescrição médica. Na década de 1970, críticos escreveram livros sobre os gastos dessas companhias para “alcançar, persuadir, adular, mimar, iludir” os médicos — e, assim, vender mais. A maior parte do dinheiro foi para os representantes, homens — e, mais tarde, mulheres — que visitavam consultórios no intuito de explicar os benefícios dos medicamentos e deixar presentes. Pelo súbito aumento das vendas de marcas específicas de remédios, os farmacêuticos sabiam quando os representantes haviam feito uma visita na região. No jornal da Associação Médica Americana, propagandas de medicamentos respondiam por metade da renda, o que talvez explique por que a instituição não reclamava das práticas de marketing da indústria farmacêutica.35
[...] O ponto de partida para análise da influência do financiamento é o impacto dos presentes no comportamento humano — que tem sido observado pelos psicólogos.
Psicologia dos presentes
Assim como eu antes de fazer essa pesquisa, você também pode achar que presentes não são grande coisa. Você dá e recebe presentes, alegremente ou não. Você agradece a quem o presenteou. E ponto final. Porém, os muitos psicólogos que estudam os efeitos causados pelos presentes que a indústria farmacêutica dá para médicos recordam que estes profissionais são humanos e que muito do que os seres humanos pensam e sentem ocorre inconscientemente. Todos nós, inclusive os médicos, respondemos a presentes de maneira previsível. Nossas respostas — e isso é decisivo — geralmente são involuntárias, inconscientes e irreconhecíveis. Nenhum médico, portanto, pretende se comprometer com uma empresa farmacêutica, mas até mesmo um presente pequeno é suficiente para mudar a prática de prescrição em favor de quem o presenteou. Presentes maiores têm ainda mais impacto. Apesar dessa evidência, os agraciados — humanos como são — acreditam que os mimos e os pagamentos das empresas farmacêuticas não exercem influência.36
Essas conclusões derivam de estudos experimentais de psicologia, neurobiologia e economia comportamental. Demonstram que até mesmo pessoas com boas intenções respondem de maneira previsível a presentes e pagamentos, mas não percebem que o fazem. Empresas farmacêuticas, portanto, não “compram” médicos, e médicos não “se vendem” para empresas farmacêuticas. A influência é muito mais sutil e torna excepcionalmente difícil a prevenção, o gerenciamento e até mesmo a discussão sobre o assunto. Se não acreditam que são influenciados, os beneficiários não veem motivo para recusar presentes e pagamentos.”37 Os médicos podem não ser corruptos, mas o sistema os corrompe.
As empresas farmacêuticas estão no negócio de venda de medicamentos. Querem, portanto, que os médicos prescrevam suas marcas no lugar de concorrentes, genéricos ou produtos sem receita, mesmo quando essas alternativas apresentam melhores resultados e são mais eficazes e menos dispendiosas. Pagam aos médicos para fazer recomendações por elas, falar e agir em nome delas em comitês ou conselhos. Também oferecem inscrições gratuitas em conferências (realizadas, geralmente, em resorts), despesas de viagem e refeições.
- [...] No início dos anos 1990, pesquisadores mostraram que uma viagem gratuita para uma conferência patrocinada pelo setor dobrava a taxa de prescrição de um certo remédio.
- Em 2000, uma análise de mais de quinhentos estudos descobriu que presentes, refeições, financiamentos de viagem e visitas de representantes da indústria estavam fortemente correlacionados com mais prescrições de medicamentos de marca em detrimento de alternativas mais baratas ou mais eficazes.40
- [...] Em 2015, pesquisadores descobriram que quase a metade de todos os médicos dos Estados Unidos aceitou pagamentos do setor, num total de 2,4 bilhões de dólares.
- Um levantamento sobre as prescrições de estatina41 no ano seguinte chegou a uma correlação: para cada mil dólares recebidos de empresas farmacêuticas, a taxa de prescrição para estatinas de marca aumentou 0,1%, enquanto os pagamentos por treinamento educacional levaram a um aumento de 4,8%.
- Pesquisadores preocupados com a crise de saúde provocada pelo uso excessivo de opiáceos descobriram que, de 2013 a 2015, um em cada doze médicos norte-americanos recebeu pagamentos — mais de 46 milhões de dólares — de empresas que vendiam esses medicamentos.42
Especialmente preocupante é o fato de que não se precisa de muito para exercer essa influência. Canetas, lembrancinhas, blocos de prescrição e amostras de medicamentos induzem a mudanças nas taxas de prescrição. Visitas de representantes da marca são particularmente eficazes — em função disso, agora, muitos hospitais as proíbem. Pagamentos para falar ou fornecer recomendações também funcionam muito bem. Hoje, almoços e jantares — no valor médio de 138 dólares (espera-se que com vinho) — são o tipo mais frequente de presente da indústria farmacêutica. Até mesmo refeições de menos de quinze dólares estão intimamente relacionadas a maiores taxas de prescrições — mesmo meses depois de terem sido desfrutadas. Jornalistas investigativos da ProPublica usaram os dados do Open Payments[, um portal da transparência imposto por lei,] para demonstrar a relação entre a magnitude dos pagamentos das empresas farmacêuticas e as práticas de prescrição.43
Igualmente perturbadora é a disposição generalizada para aceitar tais presentes. Em 2009, quase 84% dos médicos relataram ter recebido presentes ou pagamentos de empresas farmacêuticas — cardiologistas foram alvos especialmente receptivos. Quando interrogados, porém, 90% dos que aceitam financiamento de corporações farmacêuticas negam a influência e dizem que suas prescrições se baseiam apenas no conhecimento clínico e na experiência. Pesquisas mostram outra situação. Quem recebe os regalos permanece fiel a quem presenteou por um longo tempo e, quanto maiores os agrados, mais chance de que os agraciados se oponham a qualquer medida para prevenir esse tipo de influência.
Por que médicos permitem isso? Esse aspecto também foi pesquisado. Lembre-se de que eles são humanos e de que a influência não é consciente. Médicos acreditam que merecem esses presentes. Eles estudaram por anos, sacrificando-se para chegar à posição em que estão, trabalham arduamente e talvez ainda estejam pagando as dívidas do financiamento estudantil. Veem-se, portanto, no direito de receber presentes, pois creem que são racionais nas práticas de prescrição e invulneráveis à influência da indústria farmacêutica. A lembrança dos sacrifícios que fizeram realmente aumenta a disposição para que aceitem esses agrados.44 Nada disso importaria se presentes não exercessem influência, mas o fato é que exercem. Laços financeiros com empresas farmacêuticas não afetam apenas as práticas de prescrição médica: também influenciam opiniões em comitês consultivos de medicamentos e resultados de pesquisas.